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Marcha das Vadias BH 2013

“Se cuida seu machista, a América Latina vai ser toda feminista!”

Momento em que Felicanos e Malafaias rondam e tentam retroceder algumas discussões e espaços duramente conquistados por movimento sociais e pessoas que não se conformam com a realidade opressiva imposta, a Marcha das Vádias de Belo Horizonte (2013) vibrou os alicerces da moral hipócrita da capital mineira.

O movimento ganhou corpo e cresceu durante os três anos de realização. Assim como nas edições anteriores, marchou pela Guaicurus, Praça da Estação em direção a Praça da Liberdade (da liberdade?). Na ladeira da Rua da Bahia, o grito: “Eu amo homem, amo mulher, tenho o direito de amar quem eu quiser”, em uma mágica sonora de ecos que só este trajeto proporciona. Mais uma vez a Marcha mostrou ser uma bonita e importante manifestação, arrancando olhares, rostos virados, xingamentos e muitos, muitos aplausos!

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Enquanto nas novelas a cada três cenas, em duas, há mulheres se enfrentando por causa do “cara”, o lema aqui é: “Mexeu com uma mexeu com todas”. A dicotomia entre santa X puta usada para justificar as violências contra as mulheres tem que ser rompidas, somos todas vádias e todas de respeito!

Os corpos pintados e a pouca roupa  se tornaram a marca da Marcha das Vadias pelo mundo, afinal, o movimento surgiu com a indignação de que a pouca roupa e o nossos corpos são os culpados pelos estupros que nós mulheres sofremos ou estamos propensar a sofrer. O corpo da mulher ao longo da história sempre foi objeto de troca, venda, abuso, maldição e dominação. É a partir do corpo que surgem representações sociais de gênero, é a superfície para o carimbo da opressão. O corpo é medido, o corpo é controlado. Temos que ter tal peso, tais curvas e para subir de patamar, mostrá-lo na playboy, mas muito cuidado ao usar saia curta pois podemos provocar um estupro! Chega! O corpo é meu, tire sua fita métrica do caminho que eu quero passar! Tire suas regras do caminho que elas são minhas! De burca ou de shortinho, a sua mão(e o resto) só chega onde eu quero!

“Não estou nua, estou coberta de razão”

Mais uma vezes contamos com o apoio de muitos homens que participaram ativamente da marcha e pintaram seus corpos em apoio a causa: “Homem inteligente é homem feminista!”, mas as protagonistas foram as mulheres e isso tem que continuar!

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Representantes de movimentos sociais também ajudaram a compor a Marcha: Movimento GLBT, Movimento Lésbico (ALEM), movimento estudantil, dentre outros. A presença de famílias e mulheres da terceira idade também foi notável.

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A mudança só é possível se passarmos a nos incomodar cotidianamente com questões tão cristalizadas e veladas de preconceito e opressão. Iniciando por nós mesmas. Refletindo sobre nossos julgamentos. Que as garotas que fazem o quadradinho de oito sejam tão donas dos seus corpos e merecedoras de respeito quanto qualquer senhorinha que frequenta igreja. Que esfreguem sua dança na cara da tradicional família mineira! E além desta reflexão cotidiana e interna temos que mostrar para o mundo que estamos unidas e que não vamos aceitar qualquer justificativa para a violência de gênero! . Há quem aprende históra, há quem faz! Vamos todas juntas mudar esta realizade!

 


Corpo e Pele

A pele que habito - 11

A pele, o limite físico do corpo, forma e matéria que delineia a percepção de fora sobre o que somos, que oferece conteúdo para a miscelânia de fatores que estão relacionados a nossa identidade.

Quero me permitir pensar a pele para além do órgão, pensá-la em sua função na relação do eu com o mundo. Mas o eu, termina na pele? O eu transcende. O que somos ultrapassa os limites dos contornos impostos por este órgão. Mas qual a influencia deste demarcação corporal na definição do que somos? A cor, os contornos, nos enquadra em grupos raciais e de gênero que influenciam profundamente o eu. O que é habitar um corpo, ser um corpo? Qual a pele que habito?

O filme “A pele que habito” de Almodóvar nos instiga a deslocar e a observar as relações humanas a partir de outros ângulos. É claro, para quem estiver disposto a permitir tal deslocamento e colocar em cheque verdades pré-estabelecidas de gênero que, muitas vezes, fazem parte do alicerce da própria identidade. É um convite para além das relações padronizadas de gênero e dos comportamentos “possíveis”. Submergindo da questão mais abstrata de pensar a questão da pele e do corpo como barreira, fronteira, limite, contorno ou definição do que somos, abro parênteses para trazer as polêmicas claras que o filme oferece.

 Vingança é um clichê, mas uma vaginoplastia forçada, manipulação de personalidade, transexualismo, ambivalência de sentimentos deixam a trama quase intragável, inaceitável, porém, fantástica! É preciso goles de auto-permissão para digerir a história e mergulhar nas reflexões passíveis pós sessão.

 Nenhum comportamento dos personagens do filme é trivial, a trama surpreende e os personagens são ambíguos. Nada de maldade pura e de explicações baseadas na normatividade.

 Vivemos em um momento em que as modificações corporais mais inusitadas são possíveis graças a ciência. Hoje, com o avanço científico, a mudança de sexo se é uma realidade e balança com muito padrões da estrutura heterocentrica e da divisão natural das pessoas entre homens e mulheres. Direito para alguns, inadmissível para outros, o transexualismo se faz presente e definitivamente não é um processo fácil de se entender, é complexo e merece ser pensado de acordo com sua complexidade.

Explicações, análises, patologização tem aos montes e deixo para os que preferem este caminho. Prefiro pensar pelo viés do incomodo. Porque tanto incomoda? Talvez, pelo fato da simples possibilidade da escolha se apresentar a nossa frente e necessariamente termos que nos confrontar com ela. É isso mesmo, podemos escolher ser transexual! Algo tão natualizado quanto o sexo é passível de modificação. As certezas caem e o inconsciente borbulha!

 O que mais mexe com as estruturas já tão pouco rígidas da masculidade hegemônica é que a vaginoplastia no filme é um ato forçado. O rapaz não tem escolha e alguns homens estremecem só de pensar nesta possibilidade, o que torna o filme intragável para muitos. Além disso, o médico se apaixona pela mulher que “criou” o que também balança com o “nunca pegaria um trans” do discurso de muitos super orgulhos heteros.

O filme traz tantos elementos que ficaria horas debruçada sobre eles, mas o mais interessante é que dialoga bem com as ideias pós-identitárias, pós-gênero e queer significativamente difundidas na atualidade. E é isso, adoro o que incomoda, pois só com o incomodo pensamos em novas possibilidades.

“E o corpo ainda é pouco”


Marcha das Vadias 2012

“Respeito é bom e a gente goza!”

“Liberdade ainda que vadia!”

Vadia, Puta, Madalena, Geni, Vagabunda. São inúmeras as denominações provocativas e ofensivas em relação ao comportamento sexual das mulheres, adjetivos que compactuam com o cerceamento da sexualidade feminina e com o controle dos corpos e comportamento das mulheres. A dicotomia entre puta e santa, entre Madalena e Maria apenas se atualiza na representação da mulher de rua versus mulher de família, piriguete versus mulher de respeito.

A divisão das mulheres nestes dois grupos, um passível de violência e desrespeito e outro de ser controlado e vigiado sob o risco da mulher ultrapassar a linha tênue e imaginária que “separa” os dois grupos, está em pauta nas problematizações em todos os níveis de conhecimento e atuação baseados nos movimentos e/ou nas teorizações feministas. Militantes, teóricas e demais mulheres estão em busca de problematizar, enfrentar e romper com esse padrão dicotomico, além de questionar a utilização de argumentos pautados no comportamento feminino para justificar atos de violência de gênero. A ideia de que mulheres enquadradas em determinados “tipos” são merecedoras da violência que sofrem devido ao seu comportamento é colocada em cheque.

“Joga pedra na Geni

Joga pedra na Geni

Ela é feita para apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá para qualquer um, Maldita Geni”

Geni e o Zepelim” de Chico Buarque:

A marcha das vadias surgiu em Toronto, Canadá, onde um policial alegou que as mulheres não deveriam vestir-se como “sluts” e assim diminuir um número de estupros, ou sejam, que a violência sexual pode ser provocada e justificada pela forma de vestir e de se comportar das mulheres. Este mesmo tipo de argumento é utilizado por muitas pessoas, policiais e até juizes no nosso país, para justificar ou minimizar a culpa do agressor diante de casos de violência de gênero. Muitos autores de violência contra a mulher se defendem dizendo que ela é “vagabunda”, “estava dando mole para outro”, “não se dá o respeito” dentre outros argumentos que fazem com que a violência aparenta ter um caráter justificável, como se este tipo de comportamento fosse passível de agressão e como se fosse necessário a contenção e o controle deste comportamento pelo homem.

Ao olhar a história do nosso país, em que as mulheres sempre foram vistas e consideradas propriedades dos homens, concepção materializada na justificativa através da “legítima defesa da honra” frente aos assassinatos de mulheres adúlteras, é possível perceber que, mesmo sem o respaldo legal, está forma de justificativa se mantém no imaginário social, de forma mascarada, porém não menos violênta. “Contrariamente ao que muitos podem pensar, a cultura da sociedade brasileira que ingressa no século XXI, ainda entende como não recriminável a conduta de homens que matam ou ferem suas esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou familiar.” (Pimentel, Pandjiarjian e Belloque, 2006, pg.94).

A mobilização das estudantes de Toronto no ano de 2011 ganhou visibilidade através da internet e mulheres de diversas cidades do mundo se organizaram no movimento denominado SlutWalk. Neste ano, 2012, a mobilização via internet no Brasil ganhou força, com campanhas criativas e provocativas e a marcha se realizou em diversas cidades no dia 26 de maio.

Em Belo Horizonte a manifestação saiu da Praça da Rodoviária e seguiu pela Rua dos Guaicurus, famoso ponto de prostituição da cidade. Entre olhares curiosos e espiadinhas pelas janelas a marcha entoou o verso: “Vem, vem para a marcha vem!”. Seguiu em direção a Praça da Estação e logo em direção a Praça da Liberdade. A marcha este ano, em comparação a realizada no ano anterior, ganhou força! Mulheres de todas as idades, de vários movimentos e organizações, vestidas, nuas ou fantasiadas, com frases escritas no corpo ou/e cartazes, algumas carregando os filhos(as), unidas por uma só causa: Nenhuma violência de gênero é justificável! Vários rapazes, fantasiados ou não, usando batom vermelho e carregando cartazes ajudaram a compor o movimento. Inconformismo, indignação, irreverência, criatividade marcaram a passeata ao som de “Se o corpo é da mulher, ela dá para quem quiser”, “Ei machista, meu orgasmo é uma delícia”, “Violência contra a mulher, não é o mundo que a gente quer”.

Participei das duas Marcha das Vadias realizadas até o momento na cidade de Belo Horizonte e a percepção que tive é que esse ano ela ganhou força, não só em números, mas em intensidade. Ainda há muita incompreensão sobre os objetivos do movimento e um grande incomodo causado pela nome da marcha, mas não poderia ser diferente visto a proposta é justamente dar visibilidade a questão da violência, do cerceamento da liberdade feminina e fomentar o esvaziamento do teor pejorativo dos termos puta, vadia e vagabunda. “Se ser é ser vadia, somos todas vadias!”.

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Dois dias depois da Marcha, ao passar perto de uma banca, a manchete de um jornalal me chamou atenção: “Mulher de respeito: Panicat diz ter transado com apenas dois homens”. Não resisti e li a notícia: “Praticamente virgem…”. Na hora me lembrei de uma frase que foi cantada na Marcha: “A minha luta é todo dia, mulher não é mercadoria”. Não importa com quantos homens ela transou, com quantos homens transamos, isso é escolha nossa e isso não deve ser pré-requisito para respeito.

É preciso coragem de pintar no próprio corpo a frase “eu sou vadia”, de “dar a cara a tapa” sem medo de represálias e contribuir para fim da dicotomia que ajuda a manter a violência de gênero. Ou mesmo de dizer “nem santa, nem puta, sou mulher”, pois a violência de gênero, pode atingir qualquer uma e como disse anteriormente, a linha que separa a santa da puta é tênue e imaginária, e é uma construção social com o objetivo de controle do comportamento feminino e utilizada como justificativa de violência caso seja ultrapassada.

A história é viva, a mudança se faz por estes atos, se faz por mobilização e por inconformismo. As mudanças ocorrem porque alguns tem a coragem de se mostrar, de sair da zona de conforto e questionar situações opressivas naturalizadas no cotidiano. A Marcha das Vadias não vai mudar, em um curto intervalo de tempo, a situação da violência de gênero e a forma de pensar da maioria da população, mas serve para fomentar possíveis mudanças de pensamento em algumas pessoas e para pressionar as autoridades e a população a não aceitar justificativas para violências de gênero. A mudança é lenta, é um processo.

Uma das cenas mais bonitas foi a de uma senhora no alto de um prédio balançando uma bandeira de apoio a marcha. A verdadeira e mais importante mensagem que este movimento trouxe é que: Nós, mulheres de várias partes do mundo, NÃO vamos nos conformar e NÃO vamos nos calar frente a violência!

PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria; BELLOQUE, Juliana. “‘Legítima defesa da honra’: ilegítima impunidade dos assassinos: um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, p. 65-134, 2006.


O filme, o real. A santa e a puta.


 “Ninfomania. Um invento dos homens para que as mulheres se sintam

culpadas se saem da normalidade. Cada um é como é, nada mais…”

 A sexualidade feminina, ou melhor, o controle da sexualidade das mulheres, assume diversas configurações na sociedade e é o eixo das representações que compõem as dicotomias Puta X Santa, Mulher de família x Mulher de rua, Maria X Madalena, que sim, ainda assombram e estão no cerne da lógica de violência de gênero. “Achamos que era uma garota de programa!”, não foi assim que um grupo de jovens de classe média se justificou ao espancar uma empregada doméstica?

Ao ver o filme espanhol Diário de una Ninfómana (2008), cujo o título no Brasil é Diário Proibido, inicialmente minha atenção voltou-se para o título e para a tradução. O próprio conceito de ninfomania, sexo por vício e não por prazer, é aplicada somente ao feminino, a sexualidade exagerada da mulher é vista como vício, a do homem, necessidade. O cerceamento social da sexualidade e do desejo feminino se consagra na patologização. A outra questão é que na tradução brasileira a palavra ‘ninfomania’ foi substituída pela palavra ‘proibido’, compactuando com o lugar de tabu ocupado pela sexualidade das mulheres.

Este filme está sem dúvida, na minha lista de filmes prediletos e quando o assunto é as relações de gênero e/ou feminismo ele certamente é o meu favorito. Além de ser um filme belíssimo em termos de imagens, músicas e cenas, a história remete a diversas questões do universo feminino, tratadas de uma forma leve e ao mesmo tempo instigadora de um pensamento crítico sobre as situações vividas por Valérie, a personagem principal. Traz os conflitos e prazeres sexuais de uma mulher que possuí um imenso desejo sexual e vontade de comunicar-se através do corpo frente a incompreensão do seus desejos pelas normas sociais.

Do casamento à prostituição, da santa à puta, a história tece elementos importantes para se pensar a questão da violência de gênero compreendendo-a como um fenômeno sócio político de dominação. Ao se casar com um homem pelo qual se apaixona, Val abre mão das suas experiência em busca de prazer por um sexo razoável e descobre as mazelas de se tornar “domesticada” por um comportamento aparentemente protetor e atencioso do marido. Além disso, o filme mostra com clareza o famoso Ciclo da Violência Doméstica com suas três fases: Tensão, Violência e Lua-de-mel. Este ciclo descreve a grande questão levantada pelas pessoas ao dialogarem sobre o tema: “Porque estas mulheres voltam para os homens agressores?”, “Ela deve gostar de apanhar, não saiu de casa até hoje!”. Contudo, Val sai de casa, rompe o ciclo e faz um aborto, tudo com o apoio de sua amiga e ao ruído de “não vai se livrar de mim sua puta de merda!”. A amizade no filme é um elemento importante, assim como em situações reais. Fortalecer o ciclo de amizade pode ser um caminho no atendimento ao combate a violência de gênero.

A prostituição de luxo se apresenta como um solução para o irrefreado desejo sexual de Valérie. Puro engano! Ao negar um pedido de casamento de um cliente, Val é estuprada e mais uma vez a condição de puta é evocada para justificar a violência, “Está reclamando de que, você escolheu ser puta”. Afinal, puta pode apanhar não é mesmo? Dizer que a mulher é uma puta, vagabunda e que esta com outro homem é a desculpa preferida dos homens que cometem agressão, a violência aparece como um corretivo ou algo justificável frente ao comportamento da mulher. “A minha roupa curta não é um convite ao estupro”, “O meu corpo, o meu desejo, não lhe pertence”, foram algumas frases levantadas na Marcha das Vagabundas na cidade de Belo Horizonte da qual participei em protesto a estas justificativas de violência contra as mulheres.

O paralelo entre a prostituição e o casamento, ambos espaços de dominação e controle é importante, não no sentido de colocar nós mulheres, como vítimas da situação, mas de pensar as representações sociais que geram violência de gênero. A vitimização não ajuda em nada, precisamos ser agentes da nossa história para construir novas formas de vivência e de relacionamento. Dois personagens do filme me ajudam a explicitar o que quero dizer com a ideia de sermos atrizes de nossas histórias e da construção de novos enredos:

Hassan é um amante e amigo de Val, que lhe compreende em sua liberdade e em seu desejo, a respeita como pessoa, os dois tem uma relação de amor e amizade, sem possessividade e é ele que no final da história se apresenta como uma nova possibilidade, um novo enredo.

O outro é um cliente paraplégico com sensibilidade apenas nas mãos e pescoço que ajudou Val a despertar novamente o desejo pela vida, “move os dedos das mãos, para você é fácil. Pois eu sou incapaz de mover um só dedo. Não sabe, quantas vezes, de repente, imagino que minhas mãos começam a se mover e meus dedos também, me levanto da cadeira e começo a correr…Deveríamos gostar mais de nós mesmos Valerie… Valerie viva!”. Há experiência, repletas de sentimento que nos desloca, em que a vida ganha sentido e nos sentimos mais próximos de quem a gente verdadeiramente é. Novamente Valerie se redescobre “Lentamente comecei a acariciar meu corpo. Por fim tinha descoberto que caminho seguir, o de ser eu mesma”.

Após esta experiência, Val sai na chuva e vai até a casa da amiga lhe agradecer pela amizade “O que vai fazer agora?” Viver!”

O filme termina com uma frase que eu simplesmente amo: “Sou uma mulher promíscua sim, porque procuro utilizar o sexo como meio para encontrar o que todo mundo procura. O que há de patológico nisso. Se quiser me chamar de alguma coisa, vá em frente, não me importa, mas saibam que o que sou de fato é uma nereida, uma dríade, uma ninfa simplesmente”. Acrescento a este trecho maravilhoso, que eu não caibo onde queira me enquadrar, eu transbordo!

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A hora da estrela: Gênero e Raça

A literatura, assim como a arte de forma geral, é um artefato da cultura, uma maneira de expressão da subjetividade. E é na dialética do eu com o mundo, tanto na produção literária quanto na leitura de um obra, que situa o meu interesse. Uma obra literária pode ser utilizada tanto para manter ideologias e relações sociais de dominação como pode ser algo que ultrapassa a lógica dominante e denuncia situações de opressão. Assim, podemos utilizar a literatura como ferramenta de investigação social, reflexõs teóricas e propostas de intervenção. A literatura não é um simples reflexo passivo de situações sociais, ela é uma prática, uma produção material da sociedade perpassada pelas relações de poder, pelos preconceitos, por representações sociais e por visões de mundo.  Escrever é um processo em que colocamos nossas elaborações do mundo, angústias e invenções, porém a escrita nos ultrapassa e nos reorganiza.

A leitura do livro A Hora da estrela de Clarice Lispector incomoda. Incomoda pois, pode ser lido como uma denúncia de uma situação social. A história traz uma angústia que ao mesmo tempo fascina, porque retrata uma pessoa qualquer, ou melhor, uma “nordestina qualquer” que nos colocou defronte as mazelas, dos mais diversos aspectos, encontradas na nossa sociedade. E o livro todo é realidade, “qualquer que seja o que quer dizer ‘realidade’”.

Clarice Lispector, de uma forma consciente e irônica usa e abusa dos estereótipos para provocar o/a leitor/a sobre a situação do/a imigrante nordestino/a, “Ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zépovinho sonha com fome de tudo”. Através de uma imagem estereotipada do nordeste e das relações de gênero ela criou personagens que convidam a pensar sobre preconceitos, diferenças de classe, relações raciais e étnicas na sociedade moderna. 

Para se pensar a questão do nordeste ilustrada no livro é importante lançar mão dos conceitos de raça e etnia, conceitos próximos, porém não sinônimos. Segundo Munanga o conceito de raça foi inicialmente utilizado no campo da biologia e desde o início os cientistas se deram o direito de hierarquizar, isto é, de estabelecer uma escala de valores entre as chamadas raças(Munanga p.7). Porém diante da inoperabilidade do conceito frente aos estudos de genética , raça foi deixando de se tornar uma realidade e tornou-se um conceito. Atualmente este conceito é empregado quando se quer designar conteúdos etno-semânticos ou políticos ideológicos. Assim, é um conceito “carregado de ideologia, pois como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação” (Munanga, p.81). Para este mesmo autor, a classificação da humanidade em raças hierarquizadas se fortaleceu através de teorias pseudo-científicas que serviram para legitimar e justificar relações de dominação durante o século XX e que foi recuperada pelo nazismo como justificativa para as exterminações durante a segunda guerra mundial. Assim o racismo para esse autor é a tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são consequências diretas de suas características físicas ou biológicas” (Munanga p.11).

Já a etnia, é um “conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território” (Munanga, p.18). Este conceito ganhou força depois da segunda guerra, por ser mais cômodo falar em etnia do que em raça.

Porque trazer o conceito de etnia para se pensar a questão do nordeste presente no livro A hora da estrela? No cotidiano representamos o nordestino como pertencente a um grupo social, “o nordestino”, aquele “cabra safado” como Olímpico ou uma “nordestina qualquer” como Macabéa. O/a nordestino/a é reconhecido não apenas por serem pessoas que compartilham um espaço geográfico de origem, o/a nordestino/a é reconhecido a partir de sua cultura, do modo de falar, dentre outras coisas, mas principalmente a partir dos estereótipos construídos sobre o povo do nordeste, “O rapaz e ela se olharam por entre a chuva e se reconheceram como dois nordestinos, bicho da mesma espécie que se farejam”.

Mas pensar na questão do nordeste a partir do conceito de etnia não excluí as questões relacionadas à raça, visto que o/a nordestino/a é representado também pelas suas características físicas e morfológicas, pois devido às características da miscigenação em grande parte do nordeste, a sua população se constitui em sua maioria de pardos, “Olímpico talvez visse que Macabéa não tinha a força da raça, era subproduto…”. A questão racial também surge no livro na passagem em que, Olímpico termina o namoro com Macabéa para ficar com Glória: “Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice”.

Assim, Clarice tanto abusa dos estereótipos que até a metade do livro não nomeia a personagem principal de Macabéa, fala apena “a nordestina” deixando com que nós confrontemos com nossas próprias representações de uma mulher imigrante no nordeste, como tantas outras. Ao ler o livro, repetidamente a palavra nordestina, mexeu com todas as minhas representações sobre uma imigrante do nordeste. Qual o motivo que a autora não nomeia Macabéa desde o início do livro? Macabéa não representa apenas uma pessoa e sim uma situação social. Colocar em pauta a questão do nordeste é fazer entrar em contato com toda uma concepção, uma representação de um povo e de um lugar. O nordeste é quase sempre representado como o lugar da miséria, da seca, menos desenvolvido do que o sudeste, de onde vem o/a imigrante estranho/a e não adaptado/a as grandes cidades do sudeste. “Dava-se melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmera leeenta, lebre puuuuuulando no aaaar sobre os ooooouteiros….

Assim como as questões de raça e etnia, Clarice coloca em pauta a questão de gênero. Macabéa representa a mulher passiva, dependente, desamparada que mal tinha conhecimento de si, ao mesmo tempo era um corpo doente, incapaz de absorver as especificidades de gênero: “E tinha um luxo, além de uma vez ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos. Mas como roia até quase o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se o sujo preto por baixo”. Macabéa é uma mulher não adaptada as especificidades de gênero, o que faz pensar que a criação da personagem é uma denúncia ou resistência a ditadura de gênero e de beleza feminina. Já na infância, foi criada por uma tia que lhe impunha o comportamento adequado às mulheres, a tia “considerava de dever seu evitar que a menina viesse um dia a ser uma dessas moças que em Maceió ficavam nas ruas de cigarro aceso esperando homem”. Assim, Macabéa era doce e obediente, tinha comportamentos destinados às mulheres que não querem ser prostitutas, ou “da vida”. Na dicotomia “mulheres de família” versus “mulheres da vida”, Macabéa é uma mulher de família, virginal, submissa e medíocre.

Olímpico é a representação da masculinidade, é ambicioso, viril, esperto e dominador. Já no nome demonstra esta questão, Olímpico denota algo forte, poderoso, vencedor. Busca a vida pública, quer virar político e ganhar muito dinheiro. Ele quer sempre manter o lugar superior a Macabéa, não acha nada do que ela diz interessante e demonstra saber coisas que não sabe. Culpabiliza Macabéa por tudo, até pela chuva.

Clarice cria o personagem narrador homem para dizer sobre essa situação social: “pois se fosse mulher ia chorar piegas”. Isso demonstra a ironia de Clarice diante das representações de gênero, ela através do narrador homem, consegue escrever sobre a realidade e sobre uma situação social, se fosse uma narradora mulher iria tratar a questão com sentimentalismo. Mas na realidade o narrador é a própria Clarice, com suas angústias e reflexões, mas para ironizar as representações sobre a escrita feminina,  inventa um narrador homem. Uma mulher escreve como um homem escreveria, mais uma denúncia da autora, agora relacionada às questões de gênero. Bell hooks discutie sobre a questão de usar a linguagem do opressor para dialogar, ou para simplesmente falar com ele: “Esta é a língua do opressor, no entanto eu preciso dela para falar com você” (hookes, 2008, p.857). Assim, ironicamente Clarice fala como um homem para legitimar a sua denúncia social de gênero.

Outro ponto importante sobre as relações de gênero colocada no livro é que Macabéa representa o que Butler (1993) traz como abjeção. O ser abjeto é aquele que tem sua própria humanidade questionada sendo assim, passível de violência (Butler, p. 25, 1993). O/a nordestino/a, assim como diversos segmentos da sociedade como negros/as, homossexuais, mulheres, dentre outros, representam o menos humano, pois na própria construção da humanidade se estabelece a gradação entre mais ou menos humano. Para ButlerO abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas ‘inóspitas’ e ‘inabitáveis’ da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito”. (Butler, 2001, p. 155). No caso de Macabéa, além de nordestina, ela é uma mulher, imigrante, pobre, feia, submissa, medíocre, que faz dela uma pessoa não centrada, quase fora das fronteiras do humano, lugar em que as violências são justificadas: “… cara de tola, rosto que pedia tapa”.

A minha reação ao ler o livro é que eu já conhecia Macabéa, assim como a autora disse: “Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro”. Mas porque ela tanto me incomodou? Talvez porque ela represente tudo o que eu não quero ser, mas que em alguns momentos eu sou. Porque ela representa a passividade, o abandono, a submissão, a pobreza, porque ela representa tudo aquilo que me incomoda no mundo, porque ela representa a submissão de milhares de mulheres, porque há um pouquinho de Macabéa em todas nós. A minha vontade era de dizer: “Reage Macabéa”, de sacudir o livro para não ler o final previsto, da mesma forma que tinha vontade de sacudir algumas mulheres atendidas durante o estágio de psicologia na delegacia de mulheres. Da mesma forma que me olho no espelho e digo “Reage Liliane”. O que a prende nesta situação de violência? O que nos mantém neste ciclo de discriminação e violência na qual estamos submetidas? Como é complicado lidar com estas questões tão coladas no cotidiano, muitas vezes naturalizadas ou invisibilizadas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 BUTLER, J. (2001) Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (Org). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 153-171

 HOOKS, B. Linguagem: ensinar novas paisagens/nova linguagens. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 16(3):857-864, setembro-dezembro/2008

 LISPECTOR, C. 1977. A hora da estrela. Editora Rocco 2008

 MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Disponível em: < http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/09abordagem.pdf >  acesso em 03 de julho de 2010.

VIDAL, M. A mulher nordestina em a hora da estrela: o ensaio intelectual de clarice lispector. disponível em  < http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/gandara_08.html > acesso em 06 de julho de 2010