Arquivo da tag: puta

Marcha das Vadias 2012

“Respeito é bom e a gente goza!”

“Liberdade ainda que vadia!”

Vadia, Puta, Madalena, Geni, Vagabunda. São inúmeras as denominações provocativas e ofensivas em relação ao comportamento sexual das mulheres, adjetivos que compactuam com o cerceamento da sexualidade feminina e com o controle dos corpos e comportamento das mulheres. A dicotomia entre puta e santa, entre Madalena e Maria apenas se atualiza na representação da mulher de rua versus mulher de família, piriguete versus mulher de respeito.

A divisão das mulheres nestes dois grupos, um passível de violência e desrespeito e outro de ser controlado e vigiado sob o risco da mulher ultrapassar a linha tênue e imaginária que “separa” os dois grupos, está em pauta nas problematizações em todos os níveis de conhecimento e atuação baseados nos movimentos e/ou nas teorizações feministas. Militantes, teóricas e demais mulheres estão em busca de problematizar, enfrentar e romper com esse padrão dicotomico, além de questionar a utilização de argumentos pautados no comportamento feminino para justificar atos de violência de gênero. A ideia de que mulheres enquadradas em determinados “tipos” são merecedoras da violência que sofrem devido ao seu comportamento é colocada em cheque.

“Joga pedra na Geni

Joga pedra na Geni

Ela é feita para apanhar

Ela é boa de cuspir

Ela dá para qualquer um, Maldita Geni”

Geni e o Zepelim” de Chico Buarque:

A marcha das vadias surgiu em Toronto, Canadá, onde um policial alegou que as mulheres não deveriam vestir-se como “sluts” e assim diminuir um número de estupros, ou sejam, que a violência sexual pode ser provocada e justificada pela forma de vestir e de se comportar das mulheres. Este mesmo tipo de argumento é utilizado por muitas pessoas, policiais e até juizes no nosso país, para justificar ou minimizar a culpa do agressor diante de casos de violência de gênero. Muitos autores de violência contra a mulher se defendem dizendo que ela é “vagabunda”, “estava dando mole para outro”, “não se dá o respeito” dentre outros argumentos que fazem com que a violência aparenta ter um caráter justificável, como se este tipo de comportamento fosse passível de agressão e como se fosse necessário a contenção e o controle deste comportamento pelo homem.

Ao olhar a história do nosso país, em que as mulheres sempre foram vistas e consideradas propriedades dos homens, concepção materializada na justificativa através da “legítima defesa da honra” frente aos assassinatos de mulheres adúlteras, é possível perceber que, mesmo sem o respaldo legal, está forma de justificativa se mantém no imaginário social, de forma mascarada, porém não menos violênta. “Contrariamente ao que muitos podem pensar, a cultura da sociedade brasileira que ingressa no século XXI, ainda entende como não recriminável a conduta de homens que matam ou ferem suas esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou familiar.” (Pimentel, Pandjiarjian e Belloque, 2006, pg.94).

A mobilização das estudantes de Toronto no ano de 2011 ganhou visibilidade através da internet e mulheres de diversas cidades do mundo se organizaram no movimento denominado SlutWalk. Neste ano, 2012, a mobilização via internet no Brasil ganhou força, com campanhas criativas e provocativas e a marcha se realizou em diversas cidades no dia 26 de maio.

Em Belo Horizonte a manifestação saiu da Praça da Rodoviária e seguiu pela Rua dos Guaicurus, famoso ponto de prostituição da cidade. Entre olhares curiosos e espiadinhas pelas janelas a marcha entoou o verso: “Vem, vem para a marcha vem!”. Seguiu em direção a Praça da Estação e logo em direção a Praça da Liberdade. A marcha este ano, em comparação a realizada no ano anterior, ganhou força! Mulheres de todas as idades, de vários movimentos e organizações, vestidas, nuas ou fantasiadas, com frases escritas no corpo ou/e cartazes, algumas carregando os filhos(as), unidas por uma só causa: Nenhuma violência de gênero é justificável! Vários rapazes, fantasiados ou não, usando batom vermelho e carregando cartazes ajudaram a compor o movimento. Inconformismo, indignação, irreverência, criatividade marcaram a passeata ao som de “Se o corpo é da mulher, ela dá para quem quiser”, “Ei machista, meu orgasmo é uma delícia”, “Violência contra a mulher, não é o mundo que a gente quer”.

Participei das duas Marcha das Vadias realizadas até o momento na cidade de Belo Horizonte e a percepção que tive é que esse ano ela ganhou força, não só em números, mas em intensidade. Ainda há muita incompreensão sobre os objetivos do movimento e um grande incomodo causado pela nome da marcha, mas não poderia ser diferente visto a proposta é justamente dar visibilidade a questão da violência, do cerceamento da liberdade feminina e fomentar o esvaziamento do teor pejorativo dos termos puta, vadia e vagabunda. “Se ser é ser vadia, somos todas vadias!”.

l

Dois dias depois da Marcha, ao passar perto de uma banca, a manchete de um jornalal me chamou atenção: “Mulher de respeito: Panicat diz ter transado com apenas dois homens”. Não resisti e li a notícia: “Praticamente virgem…”. Na hora me lembrei de uma frase que foi cantada na Marcha: “A minha luta é todo dia, mulher não é mercadoria”. Não importa com quantos homens ela transou, com quantos homens transamos, isso é escolha nossa e isso não deve ser pré-requisito para respeito.

É preciso coragem de pintar no próprio corpo a frase “eu sou vadia”, de “dar a cara a tapa” sem medo de represálias e contribuir para fim da dicotomia que ajuda a manter a violência de gênero. Ou mesmo de dizer “nem santa, nem puta, sou mulher”, pois a violência de gênero, pode atingir qualquer uma e como disse anteriormente, a linha que separa a santa da puta é tênue e imaginária, e é uma construção social com o objetivo de controle do comportamento feminino e utilizada como justificativa de violência caso seja ultrapassada.

A história é viva, a mudança se faz por estes atos, se faz por mobilização e por inconformismo. As mudanças ocorrem porque alguns tem a coragem de se mostrar, de sair da zona de conforto e questionar situações opressivas naturalizadas no cotidiano. A Marcha das Vadias não vai mudar, em um curto intervalo de tempo, a situação da violência de gênero e a forma de pensar da maioria da população, mas serve para fomentar possíveis mudanças de pensamento em algumas pessoas e para pressionar as autoridades e a população a não aceitar justificativas para violências de gênero. A mudança é lenta, é um processo.

Uma das cenas mais bonitas foi a de uma senhora no alto de um prédio balançando uma bandeira de apoio a marcha. A verdadeira e mais importante mensagem que este movimento trouxe é que: Nós, mulheres de várias partes do mundo, NÃO vamos nos conformar e NÃO vamos nos calar frente a violência!

PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria; BELLOQUE, Juliana. “‘Legítima defesa da honra’: ilegítima impunidade dos assassinos: um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, p. 65-134, 2006.


O filme, o real. A santa e a puta.


 “Ninfomania. Um invento dos homens para que as mulheres se sintam

culpadas se saem da normalidade. Cada um é como é, nada mais…”

 A sexualidade feminina, ou melhor, o controle da sexualidade das mulheres, assume diversas configurações na sociedade e é o eixo das representações que compõem as dicotomias Puta X Santa, Mulher de família x Mulher de rua, Maria X Madalena, que sim, ainda assombram e estão no cerne da lógica de violência de gênero. “Achamos que era uma garota de programa!”, não foi assim que um grupo de jovens de classe média se justificou ao espancar uma empregada doméstica?

Ao ver o filme espanhol Diário de una Ninfómana (2008), cujo o título no Brasil é Diário Proibido, inicialmente minha atenção voltou-se para o título e para a tradução. O próprio conceito de ninfomania, sexo por vício e não por prazer, é aplicada somente ao feminino, a sexualidade exagerada da mulher é vista como vício, a do homem, necessidade. O cerceamento social da sexualidade e do desejo feminino se consagra na patologização. A outra questão é que na tradução brasileira a palavra ‘ninfomania’ foi substituída pela palavra ‘proibido’, compactuando com o lugar de tabu ocupado pela sexualidade das mulheres.

Este filme está sem dúvida, na minha lista de filmes prediletos e quando o assunto é as relações de gênero e/ou feminismo ele certamente é o meu favorito. Além de ser um filme belíssimo em termos de imagens, músicas e cenas, a história remete a diversas questões do universo feminino, tratadas de uma forma leve e ao mesmo tempo instigadora de um pensamento crítico sobre as situações vividas por Valérie, a personagem principal. Traz os conflitos e prazeres sexuais de uma mulher que possuí um imenso desejo sexual e vontade de comunicar-se através do corpo frente a incompreensão do seus desejos pelas normas sociais.

Do casamento à prostituição, da santa à puta, a história tece elementos importantes para se pensar a questão da violência de gênero compreendendo-a como um fenômeno sócio político de dominação. Ao se casar com um homem pelo qual se apaixona, Val abre mão das suas experiência em busca de prazer por um sexo razoável e descobre as mazelas de se tornar “domesticada” por um comportamento aparentemente protetor e atencioso do marido. Além disso, o filme mostra com clareza o famoso Ciclo da Violência Doméstica com suas três fases: Tensão, Violência e Lua-de-mel. Este ciclo descreve a grande questão levantada pelas pessoas ao dialogarem sobre o tema: “Porque estas mulheres voltam para os homens agressores?”, “Ela deve gostar de apanhar, não saiu de casa até hoje!”. Contudo, Val sai de casa, rompe o ciclo e faz um aborto, tudo com o apoio de sua amiga e ao ruído de “não vai se livrar de mim sua puta de merda!”. A amizade no filme é um elemento importante, assim como em situações reais. Fortalecer o ciclo de amizade pode ser um caminho no atendimento ao combate a violência de gênero.

A prostituição de luxo se apresenta como um solução para o irrefreado desejo sexual de Valérie. Puro engano! Ao negar um pedido de casamento de um cliente, Val é estuprada e mais uma vez a condição de puta é evocada para justificar a violência, “Está reclamando de que, você escolheu ser puta”. Afinal, puta pode apanhar não é mesmo? Dizer que a mulher é uma puta, vagabunda e que esta com outro homem é a desculpa preferida dos homens que cometem agressão, a violência aparece como um corretivo ou algo justificável frente ao comportamento da mulher. “A minha roupa curta não é um convite ao estupro”, “O meu corpo, o meu desejo, não lhe pertence”, foram algumas frases levantadas na Marcha das Vagabundas na cidade de Belo Horizonte da qual participei em protesto a estas justificativas de violência contra as mulheres.

O paralelo entre a prostituição e o casamento, ambos espaços de dominação e controle é importante, não no sentido de colocar nós mulheres, como vítimas da situação, mas de pensar as representações sociais que geram violência de gênero. A vitimização não ajuda em nada, precisamos ser agentes da nossa história para construir novas formas de vivência e de relacionamento. Dois personagens do filme me ajudam a explicitar o que quero dizer com a ideia de sermos atrizes de nossas histórias e da construção de novos enredos:

Hassan é um amante e amigo de Val, que lhe compreende em sua liberdade e em seu desejo, a respeita como pessoa, os dois tem uma relação de amor e amizade, sem possessividade e é ele que no final da história se apresenta como uma nova possibilidade, um novo enredo.

O outro é um cliente paraplégico com sensibilidade apenas nas mãos e pescoço que ajudou Val a despertar novamente o desejo pela vida, “move os dedos das mãos, para você é fácil. Pois eu sou incapaz de mover um só dedo. Não sabe, quantas vezes, de repente, imagino que minhas mãos começam a se mover e meus dedos também, me levanto da cadeira e começo a correr…Deveríamos gostar mais de nós mesmos Valerie… Valerie viva!”. Há experiência, repletas de sentimento que nos desloca, em que a vida ganha sentido e nos sentimos mais próximos de quem a gente verdadeiramente é. Novamente Valerie se redescobre “Lentamente comecei a acariciar meu corpo. Por fim tinha descoberto que caminho seguir, o de ser eu mesma”.

Após esta experiência, Val sai na chuva e vai até a casa da amiga lhe agradecer pela amizade “O que vai fazer agora?” Viver!”

O filme termina com uma frase que eu simplesmente amo: “Sou uma mulher promíscua sim, porque procuro utilizar o sexo como meio para encontrar o que todo mundo procura. O que há de patológico nisso. Se quiser me chamar de alguma coisa, vá em frente, não me importa, mas saibam que o que sou de fato é uma nereida, uma dríade, uma ninfa simplesmente”. Acrescento a este trecho maravilhoso, que eu não caibo onde queira me enquadrar, eu transbordo!

.

.

.