“Respeito é bom e a gente goza!”
“Liberdade ainda que vadia!”
Vadia, Puta, Madalena, Geni, Vagabunda. São inúmeras as denominações provocativas e ofensivas em relação ao comportamento sexual das mulheres, adjetivos que compactuam com o cerceamento da sexualidade feminina e com o controle dos corpos e comportamento das mulheres. A dicotomia entre puta e santa, entre Madalena e Maria apenas se atualiza na representação da mulher de rua versus mulher de família, piriguete versus mulher de respeito.
A divisão das mulheres nestes dois grupos, um passível de violência e desrespeito e outro de ser controlado e vigiado sob o risco da mulher ultrapassar a linha tênue e imaginária que “separa” os dois grupos, está em pauta nas problematizações em todos os níveis de conhecimento e atuação baseados nos movimentos e/ou nas teorizações feministas. Militantes, teóricas e demais mulheres estão em busca de problematizar, enfrentar e romper com esse padrão dicotomico, além de questionar a utilização de argumentos pautados no comportamento feminino para justificar atos de violência de gênero. A ideia de que mulheres enquadradas em determinados “tipos” são merecedoras da violência que sofrem devido ao seu comportamento é colocada em cheque.
“Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita para apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá para qualquer um, Maldita Geni”
“Geni e o Zepelim” de Chico Buarque:
A marcha das vadias surgiu em Toronto, Canadá, onde um policial alegou que as mulheres não deveriam vestir-se como “sluts” e assim diminuir um número de estupros, ou sejam, que a violência sexual pode ser provocada e justificada pela forma de vestir e de se comportar das mulheres. Este mesmo tipo de argumento é utilizado por muitas pessoas, policiais e até juizes no nosso país, para justificar ou minimizar a culpa do agressor diante de casos de violência de gênero. Muitos autores de violência contra a mulher se defendem dizendo que ela é “vagabunda”, “estava dando mole para outro”, “não se dá o respeito” dentre outros argumentos que fazem com que a violência aparenta ter um caráter justificável, como se este tipo de comportamento fosse passível de agressão e como se fosse necessário a contenção e o controle deste comportamento pelo homem.
Ao olhar a história do nosso país, em que as mulheres sempre foram vistas e consideradas propriedades dos homens, concepção materializada na justificativa através da “legítima defesa da honra” frente aos assassinatos de mulheres adúlteras, é possível perceber que, mesmo sem o respaldo legal, está forma de justificativa se mantém no imaginário social, de forma mascarada, porém não menos violênta. “Contrariamente ao que muitos podem pensar, a cultura da sociedade brasileira que ingressa no século XXI, ainda entende como não recriminável a conduta de homens que matam ou ferem suas esposas, companheiras ou namoradas em nome de uma suposta honra conjugal ou familiar.” (Pimentel, Pandjiarjian e Belloque, 2006, pg.94).
A mobilização das estudantes de Toronto no ano de 2011 ganhou visibilidade através da internet e mulheres de diversas cidades do mundo se organizaram no movimento denominado SlutWalk. Neste ano, 2012, a mobilização via internet no Brasil ganhou força, com campanhas criativas e provocativas e a marcha se realizou em diversas cidades no dia 26 de maio.
Em Belo Horizonte a manifestação saiu da Praça da Rodoviária e seguiu pela Rua dos Guaicurus, famoso ponto de prostituição da cidade. Entre olhares curiosos e espiadinhas pelas janelas a marcha entoou o verso: “Vem, vem para a marcha vem!”. Seguiu em direção a Praça da Estação e logo em direção a Praça da Liberdade. A marcha este ano, em comparação a realizada no ano anterior, ganhou força! Mulheres de todas as idades, de vários movimentos e organizações, vestidas, nuas ou fantasiadas, com frases escritas no corpo ou/e cartazes, algumas carregando os filhos(as), unidas por uma só causa: Nenhuma violência de gênero é justificável! Vários rapazes, fantasiados ou não, usando batom vermelho e carregando cartazes ajudaram a compor o movimento. Inconformismo, indignação, irreverência, criatividade marcaram a passeata ao som de “Se o corpo é da mulher, ela dá para quem quiser”, “Ei machista, meu orgasmo é uma delícia”, “Violência contra a mulher, não é o mundo que a gente quer”.
Participei das duas Marcha das Vadias realizadas até o momento na cidade de Belo Horizonte e a percepção que tive é que esse ano ela ganhou força, não só em números, mas em intensidade. Ainda há muita incompreensão sobre os objetivos do movimento e um grande incomodo causado pela nome da marcha, mas não poderia ser diferente visto a proposta é justamente dar visibilidade a questão da violência, do cerceamento da liberdade feminina e fomentar o esvaziamento do teor pejorativo dos termos puta, vadia e vagabunda. “Se ser é ser vadia, somos todas vadias!”.
Dois dias depois da Marcha, ao passar perto de uma banca, a manchete de um jornalal me chamou atenção: “Mulher de respeito: Panicat diz ter transado com apenas dois homens”. Não resisti e li a notícia: “Praticamente virgem…”. Na hora me lembrei de uma frase que foi cantada na Marcha: “A minha luta é todo dia, mulher não é mercadoria”. Não importa com quantos homens ela transou, com quantos homens transamos, isso é escolha nossa e isso não deve ser pré-requisito para respeito.
É preciso coragem de pintar no próprio corpo a frase “eu sou vadia”, de “dar a cara a tapa” sem medo de represálias e contribuir para fim da dicotomia que ajuda a manter a violência de gênero. Ou mesmo de dizer “nem santa, nem puta, sou mulher”, pois a violência de gênero, pode atingir qualquer uma e como disse anteriormente, a linha que separa a santa da puta é tênue e imaginária, e é uma construção social com o objetivo de controle do comportamento feminino e utilizada como justificativa de violência caso seja ultrapassada.
A história é viva, a mudança se faz por estes atos, se faz por mobilização e por inconformismo. As mudanças ocorrem porque alguns tem a coragem de se mostrar, de sair da zona de conforto e questionar situações opressivas naturalizadas no cotidiano. A Marcha das Vadias não vai mudar, em um curto intervalo de tempo, a situação da violência de gênero e a forma de pensar da maioria da população, mas serve para fomentar possíveis mudanças de pensamento em algumas pessoas e para pressionar as autoridades e a população a não aceitar justificativas para violências de gênero. A mudança é lenta, é um processo.
Uma das cenas mais bonitas foi a de uma senhora no alto de um prédio balançando uma bandeira de apoio a marcha. A verdadeira e mais importante mensagem que este movimento trouxe é que: Nós, mulheres de várias partes do mundo, NÃO vamos nos conformar e NÃO vamos nos calar frente a violência!
PIMENTEL, Silvia; PANDJIARJIAN, Valéria; BELLOQUE, Juliana. “‘Legítima defesa da honra’: ilegítima impunidade dos assassinos: um estudo crítico da legislação e jurisprudência da América Latina. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, p. 65-134, 2006.